Texto: Dayana Molina, estilista e ativista indígena l @molina.ela Ser mulher em uma sociedade patriarcal é um desafio gigantesco. E esse desafio é altamente intensificado quando se é mulher racializada. Teoricamente, nascer mulher nos colocar em um lugar naturalmente desumano. E esse lugar não humano, nos faz padecer de muitas formas enquanto tentamos viver. Resistir, sobreviver e se enxergar de forma positiva, é desafio diário. Conseguimos sobreviver. Mas sobreviver não é vida. É possível viver bem em um mundo pensado para os homens e majoritariamente feito somente para eles? Não quero me estender sobre outras vivências. Mas quero recordar que nosso corpo território está enraizado nos solos dessa terra. Uma terra originalmente indígena, que não reflete a nossa identidade, a nossa cara, a nossa luta pela sobrevivência, preservação das tradições e diferentes culturas. E dessa forma, não bastasse um Brasil invadido em 1.500, nos querem congeladas. Paradas no tempo e com todo aquele estereótipo da mulher selvagem, com uma padrão irreal e sem diversidade. Somos tão diferentes e em tantos sentidos; modos de vida, nas cosmovisões, nos hábitos, costumes, povos, fenótipos, regiões, tradições. Tantos contextos e atravessamentos singulares. Será que já pararam para pensar que as histórias não são as mesmas mas se assemelham? As estratégias de violência e genocídio contra a vida de nossas matriarcas, eram cometidas quase sempre do mesmo modo: caçadas como um animal. Um animal que poderia servir como escrava sexual ou do lar. Para todo modo, caçadas no laço pelos colonizadores. Depois, por seus filhos e netos. Sinto muita angústia em ouvir histórias como essas. E logo em seguida, reconheço o quão necessário e urgente é discutirmos reparações históricas no Brasil e em toda Abya Yala (América Latina). Frequentemente as mulheres hipersexualizadas e objetificada pelos homens, sofre com a culpabilização de seus corpos serem o motivo pelo qual estupros aconteciam e acontecem. A avó pega no "laço", pariu a filha que também foi violentada,; e a neta; a bisneta. A cultura do estupro ganhou força aqui. Nos solos manchados de sangue, dor e brutalidades. Esse absurdo por muitos romantizado, é estupro. O Brasil nasce da violência sexual cometida contra mulheres indígenas e negras. E isso mudou? Quem são as mulheres mais vulneráveis socialmente? Quem são as que sofrem com os abusos e impunidades? Conseguimos ver mudanças estruturais e reais? Onde está a garantia dos direitos humanos que só vale para alguns? Onde estão as políticas de acolhimento e cuidado psicológico? Como diz uma amiga guarani, a Myrian: "a mãe do Brasil é indígena, mas sentem orgulho do pai europeu". De forma subliminar nos ensinado que é uma vergonha ter uma avó indígena ou negra, pobre, que não sabe escrever bem, que não teve muitas oportunidades e acessos. Essas mesmas mulheres violentadas, foram silenciadas, humilhadas e machucadas. Esse trauma colonial atravessa gerações. E vai maltratando a vida de outras mulheres indígenas também. Fico me questionando onde é que perderam o bom senso em compreender o óbvio? A mesma mulher que é subestimada, não era pobre, nem pouco intelectual. Nos foi tirado tudo. As riquezas, a paz, o bem viver e até o direito de existir. Sobretudo, nos foi proibido pertencer, expressar livremente a criatividade e falar a língua nativa. Perder essas referência comprometem profundamente a nossa auto estima. Nossas emoções são minimizadas. E nossa identidade invisibilizada. Depois da dor, apagar os rastros da história é a única tentativa de não se falar mais nisso. Mas o resgate dessa memória é necessário. Só entendendo o nosso passado, podemos viver o presente e transformar o futuro. E esse futuro, é sobre gentes! Nossas gentes originárias, enraizadas nessa terra. A falta de representativida reflete todas essas problemáticas sócio-políticas. Não nos enxergarmos em protagonismo, é resquícios de um Brasil colonial, cheio de racismo e preconceitos. Falamos muito sobre o quanto o racismo mata pessoas negras. Mas precisamos lembrar que matou e mata muitas pessoas indígenas. Antirracismo não pode ser uma variante. É preciso falar de antirracismo de forma ampla e plural. A luta antirracista é sobre inclusão dos corpos colocados a margem do mundo. Se acreditamos que justiça social importa, não se pode excluir indígenas. Se acreditamos que representatividade importa, importa para quem? Importa para todos os apenas para alguns? Nossos ancestrais encontravam nas florestam o fôlego de vida. Respirar era uma forma de sentir a terra, de apreciar os mundos além do que podiam ver. Essa espiritualidade os mantinham vivos em conexão com os encantados. Essa mesma ancestralidade vive em nós. Essa chama ancestral queima dentro da gente e por isso estamos vivos. Independente de onde estivermos e por onde formos, nunca deixamos de ser. Porque ser é maior que ter. Ter não significa muito. É temporário e transitório. Mas ser. é eterno. Invariavelmente forte e atemporal. Esses valores potencializa nossas vozes no mundo. Somos soprados para dentro dos lugares que ocupamos hoje. E quando chegamos nesses espaços, nunca estamos sozinhos. A presença dos nossos está ali com a gente. Todo asfalto que existe hoje aqui, tem florestas, rios e mares soterrados. Acabaram com muitas matérias físicas. Os corpos se foram. Mas o espírito é eterno. Esse legado de existir, nos reconhecermos e resistirmos, nunca acabará. Enquanto houver um de nós vivo, todos saberão as verdades do mundo e os silêncios serão quebrados. Imagem autoral dos bastidores do desfile da NALIMO, produção de
Dayana Molina, modelo Jéssica Ribeiro e fotografia de Léo Faria
